sábado, 5 de março de 2011

Em São Paulo, militância LGBT vai às ruas pedir aprovação de lei que torna crime a homofobia

Marcha acontece no próximo dia 19 de fevereiro

Por Rodrigo Cruz

Diversidade. Uma característica da qual o Brasil se orgulha, mas que na prática, ainda não é respeitada, e, sobretudo, garantida, pelo chamado Estado de direito. Estamos falando de um País que possui mais de 200 paradas gays, entre elas a maior do mundo (São Paulo), é sede da maior associação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais (LGBT) da América Latina (a ABGLT), mas que, contraditoriamente, jamais aprovou em sua esfera legislativa uma única medida a favor de sua população homossexual. O pior de tudo: o Brasil é o país líder em assassinatos de homossexuais no mundo – em média um a cada dois dias, se gundo dados da ONG Grupo Gay da Bahia (GGB).

Para se ter uma idéia, em 2009, foram 198 assassinatos documentados. Em 2010, foram mais de 250 assassinatos. Ainda segundo o GGB, proporção de vítimas geralmente é de 70% de gays, 27% de travestis e 3% de lésbicas. Os números, porém, podem ser maiores do que se imagina. Devido à total ausência de estatísticas oficiais sobre crimes de ódio contra lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais, a falta de recursos da polícia para identificar casos deste tipo e certo receio por parte das testemunhas em denunciar situações de violência, o cálculo ainda está longe de ser exato.

O Grupo Gay da Bahia realiza o levantamento há 30 anos, baseado em casos divulgados pela imprensa nacional e regional. Já exigiu inúmeras vezes que o Ministério da Justiça e as Secretarias Estaduais de Direitos Humanos assumam o compromisso de coletar os dados. Nunca obteve sucesso.

É com o intuito de pressionar o poder público para a aprovação do Projeto de Lei 122/2006 (que torna crime atos homofóbicos), sensibilizar a sociedade para a questão do preconceito contra as diferentes orientações sexuais e identidades de gênero e principalmente, pedir o fim da violência homofóbica, que militantes da causa LGBT, mobilizados a partir de uma comunidade virtual no Facebook, irão marchar no próximo dia 19, da Praça do Ciclista, rumo a Av. Paulista nº 777, em São Paulo. O local ficou conhecido depois que, em novembro do ano passado, quatro jovens de classe média atingiram um rapaz com uma lâmpada fluorescente na cabeça. O motivo? Acreditavam que a vítima era homossexual.

O episódio, no entanto, representa apenas a ponta de uma enorme teia de violência (muitas outras agressões ocorreram posteriormente em São Paulo, inclusive de homens contra mulheres homossexuais). Causa revolta que alguém seja agredido por ser homossexual em plena Av. Paulista, conhecida justamente por receber a maior parada gay do mundo, mas a homofobia é ainda pior nas capitais mais distantes do eixo sul-sudeste, no interior do país, nas pequenas cidades aonde a imprensa não chega e aonde o preconceito sequer é questionado.

Tal qual o machismo, a homofobia está presente no cotidiano dos brasileiros, e se engana quem pensa que ela atinge somente os homossexuais. Se você é heterossexual, mas simplesmente não se enquadra nos ditos padrões de comportamento do homem (ou da mulher) “tradicional”, então provavelmente você já foi, ou será, vítima de homofobia. Trata-se, sobretudo, de um preconceito de gênero.

É por isso que, além de exigir a aprovação do PLC 122, instrumento jurídico capaz de garantir a integridade física e moral de lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais, é preciso informar e conscientizar a sociedade. Para a marcha do dia 19, os organizadores preparam panfletos que explicam os reais objetivos do projeto de lei e desmistificam a idéia, amplamente difundida por setores fundamentalistas, de que o projeto impede a liberdade de expressão e culto das igrejas, já que para elas, a homossexualidade é considerada um pecado. O argumento, que pode ser contestado por qualquer um que tenha acesso ao texto integral do PLC, tem sido utilizado insistentemente pela bancada evangélica do Senado para barrar sua aprovação. Enquanto isso, milhares morrem em segredo.

O assunto também tomou conta do segundo turno das eleições presidenciais do ano passado, quando os candidatos José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) utilizaram o debate fundamentalista para ganhar parte do eleitorado evangélico, órfão da então candidata Marina Silva (PV) derrotada no primeiro turno. Dilma e Serra tiveram reuniões a portas fechadas com lideranças religiosas e a atual Presidente da República chegou a redigir uma carta a estes setores esclarecendo suas opiniões sobre o aborto e a PLC 122. Na época, a ABGLT lançou um manifesto direcionado aos candidatos, pedindo a manutenção de um debate livre de concepções religiosas.

Unidos contra a homofobia

Logo após os ataques na Av. Paulista, o militantes LGBT organizaram uma série de manifestações, que culminaram na criação de uma Frente Paulista Contra a Homofobia, que reúne grupos LGBT, ONG’s, representantes da sociedade civil, de outros movimentos pelos direitos humanos e também de órgãos públicos, com o intuito de enfrentar a crescente onda de homofobia no Estado. Além de apoiar a marcha do dia 19, a Frente pretende criar um observatório capaz de mapear a violência contra a população LGBT em São Paulo.

Rodrigo Cruz é jornalista e integrante do Coletivo LGBT 28 de Junho



SERVIÇO:

Marcha Contra a Homofobia

Data: 19 de fevereiro de 2011

Local: Praça do Ciclista, Av. Paulista esquina com a Av. da Consolação

Horário: Concentração às 15h

Itinerário: O grupo sai em marcha da Praça do Ciclista e segue em direção ao edifício 777 da Av. Paulista
John Rawls e a comissão da verdade

Procurador do Estado contesta artigo do jurista Ives Gandra na Folha de S. Paulo.

Por Marcio Sotelo Felippe

O jurista Ives Gandra, contumaz defensor de posições de extrema direita, publicou há alguns dias na Folha de São Paulo artigo critico sobre a Comissão da Verdade. As opiniões do articulista devem ser respeitadas como exercício soberano e sagrado da liberdade de expressão, mas ao expor sua tese o articulista cometeu impropriedades factuais e conceituais. As factuais são facilmente discerníveis e as menciono apenas de passagem para mostrar como um pensamento fortemente ideologizado somente se sustenta sobre o ocultamento do real. É o caso do esforço para emparelhar a Alemanha nazista e a União Soviética na II Guerra, ignorando a morte de 20 milhões de soviéticos na luta contra Hitler, grande parte em seu próprio território. Norte-americanos e ingleses mortos som aram 700 mil mortos e não sofreram invasões de território. A realidade também é maltratada no texto quando o articulista nos comunica que "guerrilheiros torturaram". É a velha e cansativa estratégia de expor o periodo da ditadura militar como uma guerra em que os dois lados “cometeram abusos”, com o objetivo de proteger os reais torturadores. A conclusão seria que o cel. Ustra, Fleury e os torturados Dilma Roussef, Câmara Ferreira e Mário Alves, entre tantos outros, estão no mesmo plano ético. São afirmações tão indefensáveis que não podem caminhar muito e nelas não nos detemos.

No entanto, as coisas são diferentes quando a distorção desliza para o plano dos conceitos teóricos ou filosóficos. O pensamento precisa de salvaguarda porque á patrimônio da Humanidade. O articulista mutilou e inverteu o sentido de uma das mais relevantes contribuições contemporâneas à filosofia política, a obra de John Rawls, na vã tentativa de invocar um argumento filosófico de autoridade contra a Comissão da Verdade.

A teoria da justiça de Rawls desenvolve-se a partir de uma imaginária posição inicial, que equivale ao momento de fundação de uma sociedade justa. Está situada, pois, na tradição contratualista, que se assenta na idéia regulative da precedência da pessoa sobre o Estado e sobre as regras básicas de estruturação da sociedade. Mesmo o realista Hobbes, que pouco concede aos súditos após a hipotética fundação da sociedade política, garante e eles o direito de preserver sua vida em qualquer circunstância, mesmo contra ordem legítima do soberano. Na engenhosa formulação de Rawls, o pacto de fundação do Estado é delegado a pessoas sob um véu de ignorância que reproduz o estado de natureza dos contratualista. Não conhecem sua posição na sociedade e nenhum de seus interesses como indivíduos singulares. Não sabem de suas habilidades e talentos. A idéia (de natureza kantiana e rousseauniana) é que encontram e acordam uma vontade geral que (Rawls procura demonstra) seria concretizada em dois princípios: (i) iguais liberdades básicas para todos; (ii) desigualdades admissíveis quando trazem benefícios para os menos favorecidos.

É evidente que nesta situação hipotética as pessoas, racionalmente, articulam esses princípios considerando sua própria inviolabilidade como seres humanos, o que é ao mesmo tempo pressuposto e sentido de qualquer noção contratualista. O objetivo específico de Rawls é atacar o utilitarismo, uma filosofia política que admite sacrifícios de direitos e liberdades em certas situações de ganho social ou político. Por isso, para desgosto daquele articulista, afirma Rawls em Uma Teoria da Justiça: “numa sociedade justa as liberdades básicas são tomadas como pressupostos e os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo dos interesses sociais”. Entre nós, ao contr&aacu te;rio do que ocorre na cultura anglo-americana, o utilitarismo não tem forte presença, mas algumas de suas teses – como o leitor já terá percebido – estão incorporadas a um certo senso comum sobre a ação do Estado contemporâneo. E podem ser extrapoladas para posições como as do articulista, que prefere um suposto ganho politico em detrimento do conceito de inviolabilidade do ser humano e dos corolários desse conceito. Tal raciocínio pode ser também claramente identificado no julgamento da lei de anistia pelo STF.

Lembra o citado articulista que, segundo Rawls, doutrinas políticas não devem ser abrangentes “em demasia”. É certamente o que ocorre, por exemplo, nos regimes fundamentalistas islâmicos, apoiados numa visão metafísica que sufoca tudo que lhes é distinto. Mas o conceito completo de Rawls, que o articulista não traz, esclarece o postulado. Doutrinas "comprehensives" (religiosas, metafísicas, morais) devem estabelecer um consenso sobreposto (“overlapping consensus”), desde que sejam doutrinas razoáveis e evidentemente não firam os princípios de justiça fundadores da estrutura política e juridica. Requisitos que excluem, de plano, a posição daquele articulista, refratário à apuração de atos de barbárie cometidos por agentes do Estado. Claro, pois, que a defesa da inviolabilidade da pessoa não é, como ousa afirmar aquele jurista, uma concepção “comprehensive” que sufocaria a sociedade, mas o objeto razoável sobre o qual podem e devem pactuar todas as concepções razoáveis que compõem o espectro politico e social da nossa sociedade. Em O Direito dos Povos, Rawls afirma que entre os princípios de justiça que devem ser respeitados pelos povos estão os direitos humanos à vida, à liberdade e à segurança. Isto está de acordo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, que considera imprescritíveis e insuscetíveis de anistia os agentes do Estado responsáveis por crimes contra a Humanidade. Rawls, como se vê, não pode dar suporte à delinquência internacional a que o Brasil estará sujeito se não cumprir a decisão da Corte Interamericana que o condenou por anistiar torturadores.

O articulista comete o erro que pretende imputar aos defensores da Comissão da Verdade: quer subordinar para sempre a sociedade brasileira aos restos da ditadura militar. Quer subordinar a sociedade à sua posição de extrema direita. A sua idéia de que assegurar o direito fundamental de proteção da pessoa é "totalitária" é um insulto à consciência democrática.

O artigo em questão tem pelo menos aquele mérito de lembrar que a Comissão da Verdade, e bem assim a decisão da Corte Interamericana, devem ser objeto do consenso sobreposto de Rawls. As diversas forças políticas razoáveis (vale dizer, democráticas) declararão à sociedade que jamais se tolerará, em tempo algum, no futuro ou no passado, que o Estado viole o corpo de um cidadão e o aniquile física e mentalmente. Sem isto, o que sobra é o esmagamento da razão pública e da consciência democrática por forças - estas sim - totalitárias.

Marcio Sotelo Felippe foi Procurador Geral do Estado de São Paulo (1995/2000) e Diretor da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (2007/20080).