domingo, 9 de janeiro de 2011

"Guerra ao tráfico" maquia guerra aos pobres

Por Luciana Araujo

O Brasil tem hoje quase 500 mil presos amontoados em menos de 300 mil vagas. Entre os detentos, 60% são negros, 58% têm entre 18 e 29 anos e 44% ainda aguardam julgamento (são presos provisórios). Quase 58 mil pessoas cumprem pena em delegacias. Somos a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

Uma análise do perfil da população carcerária evidencia o que o juiz Juarez Cirino dos Santos qualificou de “encarceramento em massa da pobreza” durante o seminário “Encarceramento em massa: símbolo do Estado penal”. Promovido pelo Tribunal Popular – articulação de entidades defensoras dos direitos humanos. O seminário aconteceu no salão nobre da Faculdade de Direito da USP entre os dais 7 e 9 de dezembro.

Nos últimos dias, a espetacularização das ações policiais no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, fez recrudescer a banalização desta realidade de violência e criminalização contra os pobres. Parcela importante da sociedade novamente esqueceu que cenas como as protagonizadas desde o dia 21 de novembro nas comunidades cariocas são a repetição de outro macabro espetáculo do gênero produzido pela mesma polícia, sob ordens do mesmo governador e do mesmo secretário de Segurança Pública, no mesmo Alemão.

A mega-operação de 2007 que resultou em 19 mortos e 13 feridos num só dia, entre eles um bebê. Ao longo dos meses o número de mortos foi crescendo. E o narcotráfico? Bom, esse continua dominando as comunidades. Financiado por gente que não passa nem perto do morro e corre quase nenhum risco de ser atingido por uma bala disparada a esmo. E amparado pelo poder de seus tentáculos dentro do aparelho do Estado.

Neste ano, a polícia se recusa a divulgar o número de mortos antes do dia 25 de novembro. Outras comunidades vêm sendo ocupadas militarmente sem que isso sequer seja divulgado como parte das operações. Crescem as denúncias de abusos e roubos praticados por agentes do Estado.

As UPPs – prometidas pela presidenta eleita como política nacional de segurança pública – mais uma vez levam às comunidades apenas o braço armado do Estado. Além de estarem projetadas estrategicamente no corredor turístico-cultural do Rio.

Aos defensores dos direitos humanos, parte da classe média e os reacionários de plantão lançam a acusação de que são defensores de “bandidos”. Mas ao que conste, a Constituição brasileira estabelece que ninguém pode ser submetido a tortura ou tratamento humano degradante. A Constituição Federal não costuma valer muito dentro do sistema penal brasileiro, que não tem nenhuma possibilidade de ressocializar os presos, incentiva a corrupção e funciona à margem da legalidade em muitos casos. Tornaram-se parte da nossa realidade o encarceramento em massa, revistas íntimas arbitrárias, inclusive em bebês, e confrontos armados em favelas e periferias.

Na esteira da histeria, mudanças na legislação são aprovadas a toque de caixa, e sempre numa perspectiva de endurecimento das penas. Nenhuma lei sobre a reforma agrária, investimento maciço na geração de empregos, valorização e qualificação dos policiais. Aliás, ao invés de aprovar a PEC que estabelece o piso salarial para policiais militares e bombeiros, os nobres deputados preferiram aprovar um reajuste de 61,83% nos próprios salários. Num país em que o salário mínimo estipulado para 2011 não deve passar a barreira dos 540 reais.



Luciana Araujo é jornalista.
Rio de Janeiro sem pena de morte!



Por Mc Leonardo

Foi com um artigo sobre a falta de programas sociais que visem acabar com a criminalidade armada dentro das favelas que passei a integrar o corpo de colaboradores da revista Caros Amigos. Por isso, me sinto na obrigação de expor aqui a minha opinião sobre a situação em que o Rio se encontra hoje.

O que está acontecendo não é novidade para quem vive dentro das comunidades pobres, já que mais uma vez o combate ao “crime organizado” se dá dentro das favelas. Na visão da cúpula de segurança do Estado, “o mal” do Rio de Janeiro mora em becos e vielas dessas localidades.

Não posso acreditar em um combate que está sendo feito da mesma maneira há tanto tempo, já que não houve resultado positivo em nenhum aspecto. A maneira de combater o uso e venda de drogas nas favelas cariocas produz marginais de todas as formas há muito tempo.

Não existe maneira de se administrar uma “boca de fumo” sem ter como aliado um ou mais funcionários públicos. Falo de policiais civis, militares e federais.

Não existe maneira de se comprar armas e munição de diversos calibres de tantas partes do mundo, sem ter como aliado algum desses mesmos agentes acima citados. Porém, quando o assunto é fronteira, essa participação conta com novos atores: falo das forças armadas e de políticos de todas as esferas da política brasileira.

Quem abastece as favelas com tantas armas e drogas não vai ter um soldado do BOPE em sua casa, sem mandado judicial, perguntando onde está o seu chefe e lhe ameaçando cobrir a cabeça com um saco plástico.

Mandar um ou mais blindados para dentro das favelas para matar quem foi seduzido por esse comercio ilegal das drogas é a resposta mais rápida que os governantes podem dar para uma classe média desinformada, que, com uma sensação de segurança estabelecida após ações desse tipo, acha que era a única coisa a ser feita.

O resultado dessas ações é mostrado na televisão, e se resume a uma quantidade de armas e drogas apreendidas, uns três ou quatro corpos (que na grande maioria das vezes são de bandidos) e um pronunciamento da Secretaria de Segurança para dizer o que foi feito lá dentro.

Mas o verdadeiro resultado ninguém fica sabendo. A polícia não pode falar devido à sua hierarquia militar. O favelado também não fala, por medo não só dos bandidos, mas dos próprios policiais, restando assim uma carta da secretaria em cima da mesa das redações editoriais, para que publiquem o que for mais conveniente para o Governo do Estado.

Crianças sem estudar é um resultado péssimo para um estado que vise acabar com a violência. No entanto, as horas de aulas perdidas não são contabilizadas.

O número de pessoas que foram mandadas embora de seus empregos por causa dos números de dias faltados por conta desse combate não é contabilizado.

O número de pessoas que não podem abrir seus comércios devido às essas ações dentro e próximos a essas localidades e que dependem diretamente deles para viver e pagar seus funcionários (que na maioria das vezes são moradores das favelas) não é contabilizado.

O número de pessoas que sofreram alguma sequela como síndrome do pânico ou até depressão depois de ter ficado na linha de tiro entre policia e bandido não são contabilizados.

O número de policiais e de seus familiares com problemas psicológicos também não são contados.

Os verdadeiros números, quando forem realmente analisados e discutidos de maneira séria por toda sociedade, poderão fazer toda diferença na hora de pensarmos em dias melhores para a o estado do Rio de Janeiro. Mas, enquanto isso não acontece, vamos assistindo à lógica da política de segurança que é a de “matar para melhorar”, e para isso acontecer sem que a sociedade se mobilize contra, o papel da mídia é fundamental.

O governador do Estado do Rio de Janeiro vai a um canal de televisão e fala que “As barrigas das mulheres pobres são fábricas de marginais”.

O Delegado Carlos Alberto Oliveira, quando era sub-chefe da Polícia Civil, comandou uma ação para capturar o traficante Nem no alto do morro na favela da Rocinha, onde resultou na morte de sete “supostos bandidos”. Em entrevista para um canal de televisão, ele foi perguntado sobre o paradeiro de Nem, que não foi capturado na ação. Falou que tinha conhecimento dos antecedentes dos bandidos que estavam ali abatidos por eles, e soltou essa: “A importância dos mortos é que faz o sucesso da operação”.

Os apresentadores e comentaristas dá área de segurança pública nas bancadas dos telejornais seguem a lógica da barbárie, fazendo com que toda população apóie essas políticas sangrentas e desumanas dentro das favelas.

Não existe nenhum tipo de organização nos crimes cometidos pelos bandidos das favelas, assim como não existe nenhum tipo de inteligência eficaz por parte da polícia. Esses são alguns dos motivos que resultam em tantas mortes, diariamente, há muitos anos em nosso estado.

Governos imediatistas, ONGs que vivem dentro dessas favelas e não se movimentam contra essa política assassina, sociedade midiática que prefere ouvir a notícia por parte de quem jamais pernoitou dentro de uma favela e uma organização política dentro das favelas que está muito longe ser suficiente para as mobilizações necessárias que as favelas precisam fazer para receber outro tipo de tratamento por parte do estado.

Nos próximo dez anos, essa combinação de erros vai triplicar a população carcerária do Rio de Janeiro, vai matar mais de vinte mil pessoas e não vai adiantar nada.

Que comecemos a nos indignar com essas mortes, pois a indignação é que fará todos nós reagirmos contra tanta violência.


Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.