sábado, 5 de março de 2011

John Rawls e a comissão da verdade

Procurador do Estado contesta artigo do jurista Ives Gandra na Folha de S. Paulo.

Por Marcio Sotelo Felippe

O jurista Ives Gandra, contumaz defensor de posições de extrema direita, publicou há alguns dias na Folha de São Paulo artigo critico sobre a Comissão da Verdade. As opiniões do articulista devem ser respeitadas como exercício soberano e sagrado da liberdade de expressão, mas ao expor sua tese o articulista cometeu impropriedades factuais e conceituais. As factuais são facilmente discerníveis e as menciono apenas de passagem para mostrar como um pensamento fortemente ideologizado somente se sustenta sobre o ocultamento do real. É o caso do esforço para emparelhar a Alemanha nazista e a União Soviética na II Guerra, ignorando a morte de 20 milhões de soviéticos na luta contra Hitler, grande parte em seu próprio território. Norte-americanos e ingleses mortos som aram 700 mil mortos e não sofreram invasões de território. A realidade também é maltratada no texto quando o articulista nos comunica que "guerrilheiros torturaram". É a velha e cansativa estratégia de expor o periodo da ditadura militar como uma guerra em que os dois lados “cometeram abusos”, com o objetivo de proteger os reais torturadores. A conclusão seria que o cel. Ustra, Fleury e os torturados Dilma Roussef, Câmara Ferreira e Mário Alves, entre tantos outros, estão no mesmo plano ético. São afirmações tão indefensáveis que não podem caminhar muito e nelas não nos detemos.

No entanto, as coisas são diferentes quando a distorção desliza para o plano dos conceitos teóricos ou filosóficos. O pensamento precisa de salvaguarda porque á patrimônio da Humanidade. O articulista mutilou e inverteu o sentido de uma das mais relevantes contribuições contemporâneas à filosofia política, a obra de John Rawls, na vã tentativa de invocar um argumento filosófico de autoridade contra a Comissão da Verdade.

A teoria da justiça de Rawls desenvolve-se a partir de uma imaginária posição inicial, que equivale ao momento de fundação de uma sociedade justa. Está situada, pois, na tradição contratualista, que se assenta na idéia regulative da precedência da pessoa sobre o Estado e sobre as regras básicas de estruturação da sociedade. Mesmo o realista Hobbes, que pouco concede aos súditos após a hipotética fundação da sociedade política, garante e eles o direito de preserver sua vida em qualquer circunstância, mesmo contra ordem legítima do soberano. Na engenhosa formulação de Rawls, o pacto de fundação do Estado é delegado a pessoas sob um véu de ignorância que reproduz o estado de natureza dos contratualista. Não conhecem sua posição na sociedade e nenhum de seus interesses como indivíduos singulares. Não sabem de suas habilidades e talentos. A idéia (de natureza kantiana e rousseauniana) é que encontram e acordam uma vontade geral que (Rawls procura demonstra) seria concretizada em dois princípios: (i) iguais liberdades básicas para todos; (ii) desigualdades admissíveis quando trazem benefícios para os menos favorecidos.

É evidente que nesta situação hipotética as pessoas, racionalmente, articulam esses princípios considerando sua própria inviolabilidade como seres humanos, o que é ao mesmo tempo pressuposto e sentido de qualquer noção contratualista. O objetivo específico de Rawls é atacar o utilitarismo, uma filosofia política que admite sacrifícios de direitos e liberdades em certas situações de ganho social ou político. Por isso, para desgosto daquele articulista, afirma Rawls em Uma Teoria da Justiça: “numa sociedade justa as liberdades básicas são tomadas como pressupostos e os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo dos interesses sociais”. Entre nós, ao contr&aacu te;rio do que ocorre na cultura anglo-americana, o utilitarismo não tem forte presença, mas algumas de suas teses – como o leitor já terá percebido – estão incorporadas a um certo senso comum sobre a ação do Estado contemporâneo. E podem ser extrapoladas para posições como as do articulista, que prefere um suposto ganho politico em detrimento do conceito de inviolabilidade do ser humano e dos corolários desse conceito. Tal raciocínio pode ser também claramente identificado no julgamento da lei de anistia pelo STF.

Lembra o citado articulista que, segundo Rawls, doutrinas políticas não devem ser abrangentes “em demasia”. É certamente o que ocorre, por exemplo, nos regimes fundamentalistas islâmicos, apoiados numa visão metafísica que sufoca tudo que lhes é distinto. Mas o conceito completo de Rawls, que o articulista não traz, esclarece o postulado. Doutrinas "comprehensives" (religiosas, metafísicas, morais) devem estabelecer um consenso sobreposto (“overlapping consensus”), desde que sejam doutrinas razoáveis e evidentemente não firam os princípios de justiça fundadores da estrutura política e juridica. Requisitos que excluem, de plano, a posição daquele articulista, refratário à apuração de atos de barbárie cometidos por agentes do Estado. Claro, pois, que a defesa da inviolabilidade da pessoa não é, como ousa afirmar aquele jurista, uma concepção “comprehensive” que sufocaria a sociedade, mas o objeto razoável sobre o qual podem e devem pactuar todas as concepções razoáveis que compõem o espectro politico e social da nossa sociedade. Em O Direito dos Povos, Rawls afirma que entre os princípios de justiça que devem ser respeitados pelos povos estão os direitos humanos à vida, à liberdade e à segurança. Isto está de acordo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, que considera imprescritíveis e insuscetíveis de anistia os agentes do Estado responsáveis por crimes contra a Humanidade. Rawls, como se vê, não pode dar suporte à delinquência internacional a que o Brasil estará sujeito se não cumprir a decisão da Corte Interamericana que o condenou por anistiar torturadores.

O articulista comete o erro que pretende imputar aos defensores da Comissão da Verdade: quer subordinar para sempre a sociedade brasileira aos restos da ditadura militar. Quer subordinar a sociedade à sua posição de extrema direita. A sua idéia de que assegurar o direito fundamental de proteção da pessoa é "totalitária" é um insulto à consciência democrática.

O artigo em questão tem pelo menos aquele mérito de lembrar que a Comissão da Verdade, e bem assim a decisão da Corte Interamericana, devem ser objeto do consenso sobreposto de Rawls. As diversas forças políticas razoáveis (vale dizer, democráticas) declararão à sociedade que jamais se tolerará, em tempo algum, no futuro ou no passado, que o Estado viole o corpo de um cidadão e o aniquile física e mentalmente. Sem isto, o que sobra é o esmagamento da razão pública e da consciência democrática por forças - estas sim - totalitárias.

Marcio Sotelo Felippe foi Procurador Geral do Estado de São Paulo (1995/2000) e Diretor da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (2007/20080).

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